Cantando História

A música popular é uma rica fonte para entendermos a cultura popular e desvendarmos alguns fatos poucos esclarecidos.

Zambi

Autor:

Edu Lobo / Vinícius de Moraes

Tema:

A Escravidão Africana no Brasil e a Resistência Organizada dos Quilombos

Liberdade, Liberdade! / Ganga-Zumba / É Zumbi Lutando / É um lutador / Faca cortando / Talho sem dor / É o mesmo sangue / É a mesma dor. Na voz de Elis Regina, ou mais recentemente, na de Criolo, esses versos ganham a forma de um canto sentido, com pesar, expressando um grande sofrimento. Isso nos leva a perguntar sobre os dois personagens históricos citados nos versos: quem foram Zumbi e Ganga-Zumba? Responder essa pergunta nos coloca em contato com povos guerreiros que lutaram contra a escravidão, em um contexto em que o trabalho escravo não somente era permitido como extremamente lucrativo.

A escravidão é uma prática que remonta à Antiguidade europeia (gregos, espartanos e romanos, por exemplo) e oriental (chineses, egípcios) e também esteve presente nos impérios Inca e Asteca, na civilização Maia e entre nações e reinos da África. Nesses casos o escravo era oriundo de algum povo conquistado. Mas na Idade Moderna a escravidão assume outra feição: beneficiando-se de rivalidades locais, os portugueses protagonizam um lucrativo negócio de tráfico de pessoas, vendendo escravizados para trabalhar como mão de obra nas lavouras da América portuguesa. Assim se estabelecia uma atividade econômica que muitas vezes conhecemos sob o nome de “comércio triangular”: manufaturas portuguesas iam de navio até a costa da África; lá eram trocadas por prisioneiros que eram embarcados para o Brasil, para trabalhar nas plantações de cana; do Brasil saíam navios abarrotados de açúcar em direção a Lisboa. E assim esse ciclo seguia continuamente ativado. Entre os séculos XVI e XIX, mais de quatro milhões de pessoas foram capturadas e escravizadas. A diminuição desse fluxo se deu somente ao longo do século XIX, com o Brasil já independente, por conta de movimentos abolicionistas e pressão da Inglaterra, resultando nas “leis para inglês ver”, feitas para combater o tráfico, mas com pouco efeito, na prática. A abolição da escravidão viria tardiamente, apenas em 1888, e mesmo antes disso, escravos recorriam à Justiça para obter sua liberdade.

Imagine que alguém está em casa, na África, vivendo sua vida, trabalhando, cuidando das crianças ou cozinhando. Essa pessoa é arrancada de casa e feita prisioneira, violentamente, por algum grupo. Em seguida, é posta, junto com outras tantas pessoas, dentro de um barracão, onde seria marcada com um ferro em brasa, para identificação corporal, embarcada, acorrentada a outras tantas, em um navio superlotado até alguns pontos específicos do litoral brasileiro, como Salvador, Recife e Rio de Janeiro – em uma viagem que se estendia de um a dois meses. No interior do navio, escassez de água potável, muito calor e pouca comida. Então, tendo resistido à viagem do navio negreiro, também chamado tumbeiro (entre dezenas ou pouco mais de uma centena de pessoas morriam antes da chegada, daí esse nome, derivado de “tumba”), seria levada para o porto, onde, com os demais sobreviventes do navio, seria exposta e leiloada, podendo ser comprada por algum fazendeiro para passar o resto da vida trabalhando como escravo até quinze horas por dia em uma lavoura, destino comum a seus parentes trazidos da África e também às gerações posteriores.

Mas a chegada e adaptação dos escravizados ao Brasil não era nada simples. Como aceitar facilmente a perda brutal da liberdade, em uma terra desconhecida, estranha em costumes e língua? Mesmo entre os africanos que aqui já estavam, temos de levar em conta a imensa diversidade étnica e linguística de seu continente, reunindo pessoas de origens distintas entre si, sendo assim classificadas como Angola (que formava o Reino do Congo), Benguela (parte litorânea de Angola, porto onde eram feitos muitos dos embarques), Cabinda (região de Angola, entreposto escravista), Mina (atual Gana) ou Moçambique (costa oriental da África). O cotidiano escravo envolvia violências de muitos tipos: verbal, física, cultural, sob forma de castigos e arbitrariedades, como a imposição da religiosidade católica sobre costumes ancestrais. Uma das formas de resistir a isso foi o sincretismo, que associava deuses Yorubá, por exemplo, aos santos católicos, preservando-se a essência da religiosidade trazida da África. Assim, um santo guerreiro do catolicismo, como São Jorge, era reverenciado pelos escravos, que viam dessa forma uma maneira de cultuar uma divindade da metalurgia e da guerra, Ogum. Ainda assim, muitos escravizados cometeram suicídio ou fugiram da vida nas senzalas, onde eram alojados, nas fazendas produtoras de açúcar. Mas outros tantos decidiram se rebelar diante daquela situação, julgando-a inaceitável.

Alguns não tiveram sucesso em suas fugas, sendo recapturados e castigados com chibatadas, publicamente, para desencorajar novas fugas. Mas aqueles que conseguiam fugir e se distanciar das fazendas formaram núcleos, que ficaram conhecidos como quilombos ou mocambos. Neles, reproduzia-se uma organização política e social similar àquela encontrada nas cidades e reinos de origem de seus habitantes. Foram formados quilombos no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Rio Grande do Sul, Bahia e Pernambuco. Nesta capitania se desenvolveu o Quilombo dos Palmares, em região do atual estado de Alagoas, nos primeiros anos do séc. XVII. Palmares foi uma referência da resistência negra à escravidão, tendo se desenvolvido em uma área de quase 30 mil km², reunindo um conglomerado de aldeias organizadas em torno de uma liderança central.

Palmares despertou a ira dos fazendeiros e das autoridades, já que seu crescimento representava prejuízos para a economia colonial, extremamente dependente do trabalho escravo. Então, expedições militares foram organizadas pelas autoridades portuguesas para eliminar o Quilombo dos Palmares e, dessa forma, minar a ocorrência de novas Um dos líderes de Palmares foi Ganga Zumba, proveniente do Reino do Congo. Seu apelido tinha raízes no kimbundu (língua falada no noroeste de Angola, local que correspondia, na época, a parte do Reino do Congo), significando “grande lorde”. Governava, de fato, como um rei, contando com ministros e tropas, coordenando dois centros, um político (Macaco) e outro militar (Subupira), sustentando-se da agricultura, caça e pesca.

Em 1678, não obtendo sucesso em seus ataques, o governador de Pernambuco, Pedro de Almeida, buscou um acordo com Ganga Zumba, estabelecendo que, a partir de determinada data, os fugitivos que chegassem a Palmares seriam devolvidos a seus donos. Esse acordo revoltou muitos dos que apoiavam Ganga Zumba, entre eles seu sobrinho, Zumbi, que reúne muitos quilombolas em torno de sua liderança. Ganga Zumba morre envenenado, o que abre espaço para o reinado de Zumbi no Quilombo dos Palmares a partir de 1680. Vendo que o acordo com os quilombolas estava, assim, desfeito, o governo de Pernambuco intensificou os ataques ao quilombo. Mesmo em menor número e dispondo de armas menos efetivas que as tropas inimigas, Palmares resistia. Somente com a chegada do bandeirante paulista Domingos Jorge Velho a Pernambuco, em 1687, é que os quilombolas vão sendo, aos poucos, sufocados, culminando com a destruição do Quilombo entre 1692 e 1694, havendo o massacre quase total dos milhares de quilombolas. Ferido, Zumbi consegue escapar, mas acaba sendo capturado pelo capitão Furtado de Mendonça após traição. Foi morto no dia 20 de novembro de 1695, tendo sido decapitado. Sua cabeça foi salgada e exposta publicamente na praça da Igreja do Carmo, em Recife. Posteriormente a praça foi rebatizada Zumbi dos Palmares.

A música invoca várias vezes o nome Zambi, em meio a menções que falam de luta, fuga, paixão, dor, sangue, clamando chega de viver / na escravidão. Zambi é o deus supremo, aquele que criou a vida e todas as coisas, entre os povos Bantos, cuja intercessão era pedida para que a luta pela liberdade pudesse ter o desfecho tão esperado por tantos que nasceram e morreram em cativeiro. E tanto no Brasil como em outros países, como os Estados Unidos, a liberdade seguiu custando caro aos negros e negras ao longo do século XX: os movimentos pelos direitos civis buscaram afirmar a igualdade e foram reprimidos com brutalidade, custando ainda mais vidas. Homens e mulheres como Zumbi dos Palmares, Martin Luther King Jr, Rosa Parks, o marinheiro João Cândido entre tantos e tantos anônimos enfrentaram frontalmente o racismo e buscaram afirmar uma luta pela liberdade, que envolve ser livre quanto à participação política, escolhas estéticas, credos e crenças, quanto a um exercício pleno de cidadania, e que tem sido sistematicamente atacada. A memória dessa luta pela liberdade está presente na arte, na política, no cotidiano de nossa vida em sociedade. E ainda é muito pouco, quando pensamos que nos anos 10 do século XXI ainda ecoam insultos racistas em estádios, na mídia e nas redes sociais. É o mesmo sangue / É a mesma dor.