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Depois de um século, finalmente desponta a grandiosidade de um escritor (Larry Rohter)

Quando o romancista Joaquim Maria Machado de Assis morreu há cem anos, sua morte passou quase desapercebida fora do Brasil. Mas, recentemente, ele deixou de ser uma personalidade secundária nos países de língua inglesa e passou a ser um dos escritores favoritos, tendo sido, segundo muitos aclamados escritores e críticos, injustamente negligenciado como gênio da literatura.

Susan Sontag, uma antiga entusiasta e admiradora do escritor, uma vez disse que ele era o maior escritor da América Latina, ultrapassando, inclusive, Borges. Em 2002, no seu livro “Genius”, Harold Bloom foi mais longe, dizendo que Machado de Assis era o melhor escritor negro conhecido.

Comparado com Flaubert, Henry James, Beckett e Kafka, John Barth e Donald Barthelme o consideram uma influência. Isso fez com que houvesse um outro olhar para a obra de Machado de Assis, que, com seu maravilho senso de descrever o improvável, certamente teria apreciado. Afinal, o romance mais celebrado do escritor, Memórias Póstumas de Brás Cuba é a autobiografia de um decadente aristocrata que reflete, após sua morte, sobre os desapontamentos e fracassos de sua vida.

Em reconhecimento à tardia descoberta do autor “Machado 21: A Centennial Celebration” acontecerá de segunda a sexta-feira em Nova Iorque e New Heaven, um pouco após 29 de setembro, data de sua morte. As comemorações incluem mesas redondas e seminários para discutir a vida e a obra de Machado, suas leituras, mostra de filmes baseados em sua obra, uma exibição de arte inspirada em seus escritos e uma apresentação de alguns de seus poemas musicados.

Harry Bloom descreve Machado de Assis como um “milagre”. Nascido no Rio de Janeiro em 1839, Machado era neto de escravos, filho de um pintor e de uma lavadeira branca, imigrante dos Açores. Muito culto e erudito, ele foi autodidata, trabalhou como aprendiz de tipógrafo e como jornalista antes de se tornar romancista, poeta e escritor de peças de teatro.

Machado de Assis chegou a trabalhar no Ministério da Agricultura, casou-se com uma portuguesa de família nobre e viveu uma vida de classe média que permitiu que tivesse uma carreira paralela como tradutor de Shakespeare, Vitor Hugo e outros grandes escritores. Mas, por volta dos quarenta anos, quando ele já sofria de epilepsia, a saúde piorou e ele quase perdeu a visão – momento esse que provocou uma mudança radical no seu estilo, atitude e foco narrativo.

Durante um quarto de século, Machado de Assis produziu cinco romances que o tornaram famoso. Embora os críticos estrangeiros considerem o niilista Memórias Póstumas de Brás Cuba, publicado em 1881, sua obra-prima, muitos brasileiros preferem o melancólico Dom Casmurro (1899) – livro que aborda o efeito corrosivo do ciúme.

“Como um amigo inglês me disse, ele é o melhor”, disse Roberto Schwarz, um dos maiores especialistas em Machado de Assis, em uma entrevista por telefone de São Paulo. “O que você vê nos cinco romances e nos seus contos daquele período é um escritor sem ilusões, corajoso e cínico, que é muito civilizado, mas, ao mesmo tempo, implacável ao expor a hipocrisia do homem moderno acomodado a condições intoleráveis”.

Desde o cinema mudo, a obra de Machado de Assis é fonte preferida para cinegrafistas brasileiros. O diretor Nelson Pereira dos Santos recentemente organizou uma mostra de 25 adaptações para o cinema na Academia Brasileira de Letras no Rio de Janeiro, a qual Machado ajudou a fundar em 1897.

“Quando você lê Machado pela primeira vez na escola, você percebe, rapidamente, que ele é mestre da nossa língua. Como Shakespeare, ele é um verdadeiro mago com as palavras”, disse Nelson Pereira dos Santos. “E ele é tão atual e psicologicamente astuto. Apesar das grandes mudanças na sociedade brasileira que já vi, a habilidade machadiana de capturar a essência das relações sociais e do comportamento – muitas delas arcaicas, mas atuais no século XXI –, tornam a obra dele extremamente importante”.

As comemorações, nessa semana, incluem uma mostra de dois filmes, dirigidos por Nelson Pereira dos Santos, no Lincoln Center, como parte da programação do festival Latinbeat: “Asilo Muito Louco”, baseado no livro “O Alienista”, e “Missa do Galo”, uma adaptação de um conto do mesmo nome.

Nelson Pereira do Santos sinaliza que poucas obras de Machado foram bem adaptadas para as telas do cinema. A razão, ele acredita, seja porque parte pode ter se perdido ou ter sido simplificada. “Além disso, é um grande desafio, por causa da ambigüidade e ironia”, continua Pereira dos Santos, “e, a não ser que se use um narrador, é difícil transmitir a ambigüidade. Por isso, nunca tive coragem de filmar os romances, porque outros diretores também acham que seria uma difícil tarefa”.

Muitos escritores que admiram Machado de Assis acreditam que sua obra é percussora das mais importantes tendências do último século. Allen Ginsberg descreve o escritor como um “novo Kafka” durante uma visita ao Chile em 1961, e, no mês passado, Philip Roth fez comparações entre Machado e Beckett.

“Ele é muito irônico, um comediante trágico”, disse Philip Roth em uma entrevista à Folha de São Paulo. Nos seus livros, nos momentos mais cômicos, ele destaca o sofrimento fazendo-nos rir. Como Beckett, ele é irônico com o sofrimento.

Outros encontram semelhanças com Swift e Laurence Sterne. “Ele é muito engraçado, mais que Stern”, falou Harry Bloom em uma entrevista por telefone. “Na verdade, ele é tão engraçado algumas vezes que, quando releio “Tristam Shandy”, eu posso jurar que Sterne leu Machado.

Críticos se perguntam porque levou tanto tempo para que os países de língua inglesa gostassem da obra de Machado de Assim. Harry Bloom acredita que algumas das primeiras traduções foram “inadequadas”. Novas versões foram lançadas na década de 90, inclusive várias de Gregory Rabassa, que também já traduziu Gabriel García Marques, Mario Vargas Llosa e Julio Cortazar.

Traduzir Machado “foi muito divertido”, disse Rabassa. “Ele escreve em português fluente, fluido, clássico, provavelmente a melhor prosa já produzida. Mas ele tinha uma sensatez à frente de seu tempo, e, talvez, até à frente de nosso tempo também. Ele é cético e, em nenhum momento, idealista”.

Susan Sontag, que escreveu a introdução do livro Memórias Póstumas de Brás Cuba, tradução de Gregory Rabassa, argumenta que alguns fatores também retardaram a aceitação da obra de Machado, incluindo seus escritos sobre a periferia da cultura ocidental em uma linguagem considerada, injustamente, “menor”.

Os brasileiros ficam felizes ao ver que o prestígio de Machado de Assis está sendo reconhecido, embora muitos se perguntem por que demorou tanto tempo. Por outro lado, alguns reclamam que o escritor, agora celebrado nos países de língua inglesa, é uma falsa representação do “bruxo do Cosme Velho”.

Entusiastas nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha “estão fazendo com que Machado de Assis se pareça cada vez menos com ele mesmo”, destacou, em um simpósio no mês passado em São Paulo, o crítico e escritor Antônio Gonçalves Filho. “Na verdade, eles estão transformando nosso Machado em branco, como Michael Jackson. De repente, ele virou universal”.

Roberto Schwarz não tem essas preocupações. “É sempre bom para um escritor ser reconhecido”, ele disse. “Machado está tendo o destaque que merece porque tem uma imensa capacidade de universalizar problemas locais. Brasileiros e estrangeiros podem analisá-lo de diferentes ângulos, mas o próprio Machado não toma partido; ele se diverte com os dois lados”.