A um bruxo, com amor
(Carlos Drummond de Andrade)
Em certa casa da Rua Cosme Velho (que se abre ao vazio)
venho visitar-te; e me recebes
a sala trastejada com simplicidade
onde pensamentos idos e vividos perdem o amarelo
de novo interrogando o céu e a noite.
Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro.
(...)
Conheces a fundo a geologia moral do Lobo Neves
e essa espécie de olhos derramados
que não foram feitos para ciumentos.
E ficas mirando o ratinho meio cadáver
com a polida, minuciosa curiosidade
de quem saboreia por tabela
o prazer de Fortunato , vivisseccionista amador.
(...)
Bem a distingo, ronda clara: é Flora,
com olhos dotados de um mover particular
entre mavioso e pensativo; Marcela, a rir com expressão
cândida (e outra coisa); Virgília,
cujos olhos dão a sensação singular de luz úmida;
Mariana, que os tem redondos e namorados;
e Sancha, de olhos intimativos;
e os grandes, de Capitu, abertos como a vaga do mar lá fora,
o mar que fala a mesma linguagem
obscura e nova de D. Severina
e das chinelinhas de alcova de Conceição.
A todas decifraste íris e braços
e delas disseste a razão última e refolhada
(...)
Todos os cemitérios se parecem,
e não pousas em nenhum deles, mas onde a dúvida
apalpa o mármore da verdade, a descobrir
a fenda necessária;
onde o diabo joga dama com o destino,
estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro,
que revolves em mim tantos enigmas.
(...)
O estribeiro Oblivion bate à porta e chama ao espetáculo
promovido para divertir o planeta Saturno.
Dás a volta à chave, envolves-te na capa,
e qual novo Ariel, sem mais resposta,
sais pela janela, dissolves-te no ar

Por que bruxo?
O apelido de "bruxo do Cosme Velho" ganhou força no meio literário quando Carlos Drummond de Andrade publicou o poema: "A um bruxo, com amor", no qual se refere à casa de número 18, da rua Cosme Velho, situada no bairro de mesmo nome, no Rio de Janeiro, onde morou Machado de Assis.
Leia aqui o poema
Você percebeu o que o poema quer nos passar?
Seu temperamento tímido e soturno era uma incógnita.
Sua saúde debilitada - epiléptico - contribuía para este apelido.
Sua técnica narrativa em privilegiar as profundezas psíquicas dos personagens o aproxima de um bruxo psicanalista.
No poema de Drummond, percebe-se o imenso respeito e admiração do poeta por essa figura de aparência tão pouco atraente e que nada faz para agradar a qualquer visita: o nosso bruxo.
Na verdade, somente o leitor familiarizado com a obra machadiana é capaz de compreender tantas expressões, tantos nomes e situações que atravessam o texto.
Somente um leitor íntimo de Machado entra, na companhia do poeta, na casa do Cosme Velho. Esse domínio do universo machadiano veda o ingresso na intimidade do bruxo àqueles que lhe são estranhos.
Sendo assim, releia o poema, observe as citações quanto às suas obras e.... delicie-se!!
Mas não foi apenas Drummond que homenageou Machado. A literatura de cordel também o fez! Confira!
Cordel para Machado de Assis: O Bruxo do Cosme Velho